
Olhares cansados de horas intermináveis de rotina, de gestos maquinais, gélidos, inconscientes mas firmes, seguindo as ordens e objectivos impostos.
Uma miríade de universos contemplam-na, ávida de partilhas. Como começar? Observou a mochila a golfar os livros que a tinham marcado em determinadas fases da sua vida, que lhe tinham dado ideias e inspirado. Ela amava os livros, tocava-os, desbravava-os morosamente, com tempo, absorvendo tudo o que era digno de ser fotografado pela memória, libertando-se do fútil. Apreciava a panóplia de géneros literários, cada um ilustrando um estado de espírito. E partilhar este sentimento? Explanar este gosto doce, que lhe nutria continuamente o espírito, a almas repletas de vidas outras e de gostos sem costume, improfícuos e envelhecidos pela inexorabilidade do tempo. “Já gostei de ler”, dizia uma, “Mas agora não tenho tempo para nada: é o trabalho, são os filhos… e depois tenho a casa e a comida para fazer…”; ainda outro sussurrava “Eu gosto de ler as letras grandes dos jornais”; e outro “Os livros estão muito caros… eu agora só leio o jornal através da Internet”; e, pontualmente, erguiam-se um ou dois que compreendiam bem o olhar desconsolado dela naqueles instantes. Também eles se esqueciam das horas e da dimensão real onde se encontravam, pois a intensidade da história tragava-os por completo; também eles sabiam de cor o aroma daquela livraria, prenha de novos títulos, e por ali se olvidavam, bebericando um chá ao som de palavras mudas.
Chegara a hora da partilha. O voo começara.
Devagar.
Os livros espreitavam, por detrás das alças adormecidas da mochila.
Lentamente.
Ao soar de cada palavra, de cada frase, de cada história, os olhos, primeiramente indiferentes àquele universo, que eles pensavam que lhes era vedado ou que não lhes era endereçado, prendiam-se nos gestos e na voz, nas imagens, nas letras, naquela tela de sentidos que os enfeitiçava e os levava a emergir numa totalmente nova tormenta de sensações.
Magia. Emoções vestidas de letras pululavam na sala. “Este livro ajudou-me a perceber melhor a minha vida”, “Gostei especialmente do enredo amoroso nesta história.”, “Trouxe esta notícia sobre o desemprego porque está relacionada com a minha situação actual”. Essencial, senão, primordial, estar-se predisposto à aprendizagem, à absorção de novas perspectivas sobre o livro que se lera em tempos e que até se achara odioso ou maravilhoso, dependia dos estados de espírito e das etapas de vida. O que importava nesta partilha não era propriamente o resumo da história do livro mas sim o detalhe que cada um conseguia encontrar na história semelhante lida por todos, a perspectiva única de cada ser presente naquele local, àquela hora, com aquelas pessoas.
O que importava, no final daquele dia, não era propriamente vomitar ideias lidas num jornal sobre um livro ou limitar-se a resumir uma história, mas sim o sentar-se, em roda, durante horas esquecidas; o partilhar perspectivas únicas relacionando-as até com as vivências pessoais. Isso sim era gratificante! Isso sim era a dádiva pura.
T.G.
(Imagem: Armanda Passos)
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